segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Consciência Negra

"Dia da Consciência Negra"
retrata disputa pela memória histórica

Preservar a memória é uma das formas de construir a história. É pela disputa

dessa memória, dessa história, que nos últimos 32 anos se comemora no dia 20

de novembro, o "Dia Nacional da Consciência Negra". Nessa data, em 1695, foi

assassinado Zumbi, um dos últimos líderes do Quilombo dos Palmares, que se

transformou em um grande ícone da resistência negra ao escravismo e da luta

pela liberdade. Para o historiador Flávio Gomes, do Departamento de História da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, a escolha do 20 de novembro foi muito

mais do que uma simples oposição ao 13 de maio: "os movimentos sociais

escolheram essa data para mostrar o quanto o país está marcado por

diferenças e discriminações raciais. Foi também uma luta pela visibilidade do

problema. Isso não é pouca coisa, pois o tema do racismo sempre foi negado,

dentro e fora do Brasil. Como se não existisse".

Construindo o "Dia da Consciência Negra"

O 20 de novembro trata da data do assassinato de Zumbi, em 1665, o mais importante líder dos quilombos de Palmares, que representou a maior e mais importante comunidade de escravos fugidos nas Américas, com uma população estimada de mais 30 mil. Em várias sociedades escravistas nas Américas existiram fugas de escravos e formação de comunidades como os quilombos. Na Venezuela, foram chamados de cumbes, na Colômbia de palanques e de marrons nos EUA e Caribe. Palmares durou cerca de 140 anos: as primeiras evidências de Palmares são de 1585 e há informações de escravos fugidos na Serra da Barriga até 1740, ou seja bem depois do assassinato de Zumbi. Embora tenham existido tentativas de tratados de paz os acordos fracassaram e prevaleceu o furor destruidor do poder colonial contra Palmares.

Há 32 anos, o poeta gaúcho Oliveira Silveira

sugeria ao seu grupo que o 20 de novembro

fosse comemorado como o "Dia Nacional da

Consciência Negra", pois era mais significativo

para a comunidade negra brasileira do

que o 13 de maio. "Treze de maio traição,

liberdade sem asas e fome

sem pão", assim definia Silveira o

"Dia da Abolição da Escravatura" em

um de seus poemas. Em 1971 o 20

de novembro foi celebrado pela

primeira vez. A idéia se espalhou por outros movimentos sociais de

luta contra a discriminação racial e, no final dos anos 1970, já aparecia

como proposta nacional do Movimento Negro Unificado.

A diversidade de formas de celebração do 20 de novembro permite

ter uma dimensão de como essa data tem propiciado congregar os

mais diferentes grupos sociais. "Os adeptos das diferentes religiões

manifestam-se segundo a leitura de sua cultura, para dali tirar elementos

de rejeição à situação em que

se encontra grande parte da população afro-descendente. Os acadêmicos

e os militantes celebram através

dos instrumentos clássicos de divulgação de idéias: simpósios, palestras,

congressos e encontros; ou ainda a partir de feiras de artesanatos, livros,

ou outras modalidades de expressão cultural. Grande parte da população envolvida

celebra com sambão,

churrasco e muita cerveja", conta o historiador Andrelino Campos, da Universidade

Estadual do Rio de Janeiro.


Capoeira- trabalho desenvolvido pela Associação
dos Moradores de Plataforma AMPLA. Créditos: Antonia dos Santos Garcia


Para a socióloga Antonia Garcia, doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento

Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é importante que se

conquiste o "Dia Nacional da Consciência Negra" "como o dia nacional de todos os

brasileiros e brasileiras que lutam por uma sociedade de fato democrática, igualitária,

unindo toda a classe trabalhadora num projeto de nação que contemple a diversidade

engendrada no nosso processo histórico".

Diferente do 20 de novembro o 13 de maio perdeu força em nossa sociedade devido

a memória histórica vencedora: a que atribuiu a abolição à atitude exclusiva da princesa Isabel, aparentemente paternalista e generosa Isabel, analisa o historiador Flávio Gomes. Pesquisas

recentes têm recuperado a atuação de escravos, libertos, intelectuais e jornalistas negros e

mestiços para o 13 de maio, mostrando como este não se resumiu a um decreto, uma

lei ou uma dádiva. Esses estudos também têm resgatado o significado da data para

milhares de escravos e descendentes, que festejaram na ocasião.
São poucos os locais onde se mantêm comemorações no 13 de maio.

No Vale do Paraíba, no estado de São Paulo, o 13 de maio é dia de festa.

"Não porque a princesa foi uma santa ou porque os abolicionistas simpáticos

foram fundamentais, mas porque a população negra reconhece que a Abolição

veio em decorrência de muita luta", diz Gomes. Albertina Vasconcelos, professora

do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,

também lembra que a data é celebrada em vários centros de umbanda na Bahia

como o dia do preto-velho e que moradores antigos do Quilombo do Bananal,

em Rio de Contas, Bahia, contam que seus pais e avós festejaram o 13 de maio

de 1888 com muitos fogos e festas.

Na opinião de Vasconcelos "é importante comemorar, não para contrapor

uma data a outra, os heróis brancos aos heróis negros, mas porque é

necessário tomarmos consciência da história que está nessas datas,

que traz elementos da nossa identidade". Para a pesquisadora, assim

seria possível contribuir para desmistificar toda a construção ideológica

produzida sobre o povo negro.

Nas escolas: muita proposta, pouca mudança
No início de seu mandato o presidente Lula aprovou a inclusão do

Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar e tornou

obrigatório o ensino de história da África nas escolas públicas e

particulares do país. Embora a decisão tenha sido comemorada,

alguns pesquisadores ressaltam que existem obstáculos a serem

ultrapassados para que a proposta se transforme em realidade.

"Em geral, a história dada segue o livro didático e ele é insuficiente

para dar conta de uma forma mais ampla e crítica de toda a história",

ressalta Vasconcelos. Essa avaliação da historiadora é confirmada pela

professora de história Ivanir Maia, da rede estadual paulista. "A maioria

dos professores se orienta pelo livro didático para trabalhar os conteúdos

em sala de aula. Nos livros de história, por exemplo, o negro aparece

basicamente em dois momentos: ao falar de abolição da escravatura e

do apartheid".

Campos destaca que alguns livros didáticos de história têm sido mais

generosos ao retratar a "história dos vencidos", mas ressalta que a maioria,

inclusive os livros ligados a sua área - a geografia -, continua a veicular os

fatos sociais de forma depreciativa, seja referente ao Brasil ou a África.

"Encontramos com fartura os elementos de modo civilizatório ocidental

como a única verdade que merece maiores considerações", exemplifica.

Uma iniciativa importante que ocorreu nesse período foi o controle dos

livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC),

visando evitar a distribuição de livros contendo erros conceituais e

representações negativas sobre determinados indivíduos e grupos.

Mas, na opinião de Garcia, seria necessário exigir uma maior revisão nessas obras:

"os livros didáticos precisariam abordar a participação do povo negro na construção

do país, na construção da riqueza nacional, na acumulação do capital

e também as suas batalhas, rebeliões, quilombos e suas lutas mais

contemporâneas".

Paula Cristina da Silva Barreto, professora da Faculdade de Filosofia

e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, destaca que,

além dos livros didáticos, outro foco importante são as propostas

de mudança na formação dos professores. "Foi tímido o trabalho feito pelo

MEC nessa direção até o momento", critica a pesquisadora. Na avaliação dela,

sem professores bem preparados para abordar temas complexos,

como os abordados nos PCNs, "é muito difícil obter sucesso com a

alteração curricular e existe uma grande probabilidade de que as escolas

não coloquem em prática o que foi proposto". Os baixos salários pagos e

as condições de trabalho desanimadoras nas escolas são fatores também

destacados pelos pesquisadores como possíveis responsáveis pelo pequeno

envolvimento dos professores com propostas que visam abordar a diversidade

étnica e problematizar a questão do negro no Brasil no interior das escolas.



Puxada de rede - AMPLA - Associação dos Moradores de Plataforma

Experiências educativas alternativas
Existem diversos programas educativos espalhados pelo país que são propostos

e organizados por entidades ligadas aos movimentos negros brasileiros. Para Campos,

a diferença fundamental entre essas propostas e o ensino escolar "é o comprometimento

daqueles que montam os programas. Em geral são frutos de experiências de grupos

ligados aos problemas dos afro-descendentes; buscam, sobretudo, a eliminação da

desigualdade através de um instrumento poderoso: a consciência cada vez maior

da coletividade". Como exemplos, o pesquisador cita o Projeto da Mangueira,

voltado para os esportes, que já existe há muito tempo, além de experiências

que têm levado meninos e meninas às escolas de sambas-mirins no Rio de Janeiro.

Barreto, que tem acompanhado de perto alguns projetos na área de educação

implementados por organizações anti-racistas e/ou culturais de Salvador, destaca

como exemplos bem sucedidos a Escola Criativa do Olodum, o projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê e o Ceafro. "Essas experiências têm sido importantes por fomentarem o debate e

gerarem demandas por mais qualidade do ensino público, por um currículo menos

eurocêntrico e mais multicultural e multirracial, por melhores livros didáticos e por

um ambiente racialmente mais democrático nas escolas", diz Barreto. O mais

interessante é que esses projetos se transformaram em referência para as

políticas adotadas por órgãos oficiais como o Ministério Educação (MEC) e

as Secretarias de Educação. Combinando educação formal e não-formal

esses projetos tratam, por exemplo, de conteúdos presentes no currículo

oficial em espaços como os barracões dos terreiros de candomblé ou as

quadras dos blocos afro; outros utilizam parte da produção cultural das

organizações - letras de música, mitos africanos etc. - no currículo das

escolas regulares. O ensino de História da África, na escola do Ilê Aiyê,

já acontece há vários anos.

Para Barreto "é de fundamental importância o fato de que as crianças e

jovens negros e mestiços são positivamente valorizados nesses projetos,

elas são consideradas como portadores de direitos, o que tem um efeito

direto sobre a auto-imagem e a construção da identidade pessoal e coletiva".

Atualmente, a socióloga trabalha com projetos educativos voltados para a

democratização do acesso e a permanência de estudantes negros e mestiços

no ensino superior e coordena o programa A cor da Bahia, que há dez anos

realiza pesquisas, publicações e atividades de formação na área de relações

raciais, cultura e identidade negra na Bahia. Desde 2002, o programa desenvolve

o projeto tutoria, que cria estratégias diversas para estimular, apoiar e promover

a formação de estudantes negros que ingressaram na Universidade Federal da Bahia.

Com o apoio do programa Políticas da cor fornecem bolsas de ajuda de custo aos

alunos e orientação acadêmica, visando o ingresso destes no mercado de trabalho

e em cursos de pós-graduação em condições mais competitivas. Na opinião de Barreto,

ainda há muito para ser feito com no sentido de assegurar uma maior

democratização - em termos raciais e econômicos - do sistema de ensino

superior público.

"É preciso entender que a desigualdade no Brasil tem cor, nome e história.

Esse não é um problema dos negros no Brasil, mas sim um problema do Brasil,

que é de negros, brancos e outros mais", avalia Gomes.


Tabela 1 - População ocupada, segundo ramo
de atividade, por cor (em %)
Brasil - 2001
Ramos de Atividade Branca Preta Parda
Agrícola 16,1 17,5 27,5
Indústria de transformação 14,1 11,2 10,1
Indústria da construção 5,3 10,0 7,7
Outras atividades industriais 1,0 1,3 1,3
Comércio de mercadorias 15,6 11,4 12,7
Prestação de serviços 18,9 27,2 20,9
Serviços auxiliares da atividade econômica 5,6 3,2 2,7
Transporte e comunicação 4,4 4,0 3,9
Social 11,5 8,4 7,7
Administração pública 5,2 4,4 4,3
Outras atividades, mal definidas ou não declaradas 2,3 1,3 1,1
Total 100,0 100,0 100,0

Fonte: IBGE. PNAD 2001


Tabela 2 - Taxas de desemprego total, por sexo e cor
Regiões metropolitanas do Brasil - 2002

Regiões Metropolitanas
Negros
Não-Negros
Total Mulheres Homens Total Mulheres Homens
Belo Horizonte 19,9 22,4 17,9 16,1 19,9 12,8
Distrito Federal 23,0 25,2 21,0 17,2 21,2 13,3
Porto Alegre 22,7 24,7 20,8 14,9 17,9 12,5
Recife 22,4 25,8 19,8 19,1 23,3 15,3
Salvador 29,0 32,0 26,2 19,9 21,9 17,9
São Paulo 23,9 27,4 21,0 16,7 20,1 14,0

Fonte: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e convênios regionais.
PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego Elaboração: DIEESE
Obs.: (a) Dados com base na média do período de janeiro a junho de 2002
(b) Negros inclui pretos e pardos. Não-negros inclui brancos e amarelos



Tabela 3 - Distribuição das famílias por classe
de rendimento médio mensal familiar per capita,
segundo a cor do chefe (em %)
Brasil - 1999

Classes de Rendimento Famílias segundo a cor do chefe
Branca Preta Parda
Até 1/2 salário mínimo 12,7 26,2 30,4
Mais de 1/2 salário mínimo 20,0 28,6 27,7
Mais de 1 a 3 salários mínimos 37,3 31,1 27,7
Mais 3 a 5 salários mínimos 11,1 4,3 4,4
Mais de 5 salários mínimos 14,1 3,4 3,2

Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2000
Elaboração: DIEESE



Tabela 4 - Taxas de desemprego total, por cor
e escolaridade (em %)
Regiões metropolitanas do Brasil - 2001

Regiões Metropolitanas Cor Analfabeto Fundamental
Incompleto
Fundamental
Completo
Médio
Incompleto
Médio
Completo
Superior
Belo Horizonte Negra (1) 24,2 23,2 33,8 19,2 (1)
Não-Negra 17,9 15,6 16,3 22,3 12,6 4,8
Distrito Federal Negra 23,1 27,2 25,5 33,8 19,7 7,3
Não-Negra 15,9 22,0 23,0 30,3 18,3 7,3
Recife Negra 17,0 22,0 23,3 30,9 22,4 (1)
Não-Negra (1) 20,5 21,9 29,7 22,5 (1)
Porto Alegre Negra (1) 24,2 23,2 33,8 19,2 (1)
Não-Negra 17,9 15,6 16,3 22,3 12,6 4,8
Salvador Negra (1) 31,5 29,3 42,1 25,3 (1)
Não-Negra (1) 26,5 27,3 (1) 19,7 (1)
São Paulo Negra 16,4 21,4 25,9 32,7 18,1 6,9
Não-Negra 16,2 16,7 17,8 26,4 14,3 6
Fonte: DIEESE/SEADE e entidades regionais. PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego Elaboração: DIEESE
Nota (1) A amostra não comporta desagregação para esta categoria
Obs.: (a) Dados com base na média do período de janeiro a junho de 2001;
(b) Negros inclui pretos e pardos. Não-Negros inclui brancos e amarelos



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