retrata disputa pela memória histórica
Preservar a memória é uma das formas de construir a história. É pela disputa
dessa memória, dessa história, que nos últimos 32 anos se comemora no dia 20
de novembro, o "Dia Nacional da Consciência Negra". Nessa data, em 1695, foi
assassinado Zumbi, um dos últimos líderes do Quilombo dos Palmares, que se
transformou em um grande ícone da resistência negra ao escravismo e da luta
pela liberdade. Para o historiador Flávio Gomes, do Departamento de História da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, a escolha do 20 de novembro foi muito
mais do que uma simples oposição ao 13 de maio: "os movimentos sociais
escolheram essa data para mostrar o quanto o país está marcado por
diferenças e discriminações raciais. Foi também uma luta pela visibilidade do
problema. Isso não é pouca coisa, pois o tema do racismo sempre foi negado,
dentro e fora do Brasil. Como se não existisse".
Construindo o "Dia da Consciência Negra"
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Há 32 anos, o poeta gaúcho Oliveira Silveira
sugeria ao seu grupo que o 20 de novembro
fosse comemorado como o "Dia Nacional da
Consciência Negra", pois era mais significativo
para a comunidade negra brasileira do
que o 13 de maio. "Treze de maio traição,
liberdade sem asas e fome
sem pão", assim definia Silveira o
"Dia da Abolição da Escravatura" em
um de seus poemas. Em 1971 o 20
de novembro foi celebrado pela
primeira vez. A idéia se espalhou por outros movimentos sociais de
luta contra a discriminação racial e, no final dos anos 1970, já aparecia
como proposta nacional do Movimento Negro Unificado.
A diversidade de formas de celebração do 20 de novembro permite
ter uma dimensão de como essa data tem propiciado congregar os
mais diferentes grupos sociais. "Os adeptos das diferentes religiões
manifestam-se segundo a leitura de sua cultura, para dali tirar elementos
de rejeição à situação em que
se encontra grande parte da população afro-descendente. Os acadêmicos
e os militantes celebram através
dos instrumentos clássicos de divulgação de idéias: simpósios, palestras,
congressos e encontros; ou ainda a partir de feiras de artesanatos, livros,
ou outras modalidades de expressão cultural. Grande parte da população envolvida
celebra com sambão,
churrasco e muita cerveja", conta o historiador Andrelino Campos, da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro.
Capoeira- trabalho desenvolvido pela Associação
dos Moradores de Plataforma AMPLA. Créditos: Antonia dos Santos Garcia
Para a socióloga Antonia Garcia, doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é importante que se
conquiste o "Dia Nacional da Consciência Negra" "como o dia nacional de todos os
brasileiros e brasileiras que lutam por uma sociedade de fato democrática, igualitária,
unindo toda a classe trabalhadora num projeto de nação que contemple a diversidade
engendrada no nosso processo histórico".
Diferente do 20 de novembro o 13 de maio perdeu força em nossa sociedade devido
a memória histórica vencedora: a que atribuiu a abolição à atitude exclusiva da princesa Isabel, aparentemente paternalista e generosa Isabel, analisa o historiador Flávio Gomes. Pesquisas
recentes têm recuperado a atuação de escravos, libertos, intelectuais e jornalistas negros e
mestiços para o 13 de maio, mostrando como este não se resumiu a um decreto, uma
lei ou uma dádiva. Esses estudos também têm resgatado o significado da data para
milhares de escravos e descendentes, que festejaram na ocasião.
São poucos os locais onde se mantêm comemorações no 13 de maio.
No Vale do Paraíba, no estado de São Paulo, o 13 de maio é dia de festa.
"Não porque a princesa foi uma santa ou porque os abolicionistas simpáticos
foram fundamentais, mas porque a população negra reconhece que a Abolição
veio em decorrência de muita luta", diz Gomes. Albertina Vasconcelos, professora
do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
também lembra que a data é celebrada em vários centros de umbanda na Bahia
como o dia do preto-velho e que moradores antigos do Quilombo do Bananal,
em Rio de Contas, Bahia, contam que seus pais e avós festejaram o 13 de maio
de 1888 com muitos fogos e festas.
Na opinião de Vasconcelos "é importante comemorar, não para contrapor
uma data a outra, os heróis brancos aos heróis negros, mas porque é
necessário tomarmos consciência da história que está nessas datas,
que traz elementos da nossa identidade". Para a pesquisadora, assim
seria possível contribuir para desmistificar toda a construção ideológica
produzida sobre o povo negro.
Nas escolas: muita proposta, pouca mudança
No início de seu mandato o presidente Lula aprovou a inclusão do
Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar e tornou
obrigatório o ensino de história da África nas escolas públicas e
particulares do país. Embora a decisão tenha sido comemorada,
alguns pesquisadores ressaltam que existem obstáculos a serem
ultrapassados para que a proposta se transforme em realidade.
"Em geral, a história dada segue o livro didático e ele é insuficiente
para dar conta de uma forma mais ampla e crítica de toda a história",
ressalta Vasconcelos. Essa avaliação da historiadora é confirmada pela
professora de história Ivanir Maia, da rede estadual paulista. "A maioria
dos professores se orienta pelo livro didático para trabalhar os conteúdos
em sala de aula. Nos livros de história, por exemplo, o negro aparece
basicamente em dois momentos: ao falar de abolição da escravatura e
do apartheid".
Campos destaca que alguns livros didáticos de história têm sido mais
generosos ao retratar a "história dos vencidos", mas ressalta que a maioria,
inclusive os livros ligados a sua área - a geografia -, continua a veicular os
fatos sociais de forma depreciativa, seja referente ao Brasil ou a África.
"Encontramos com fartura os elementos de modo civilizatório ocidental
como a única verdade que merece maiores considerações", exemplifica.
Uma iniciativa importante que ocorreu nesse período foi o controle dos
livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC),
visando evitar a distribuição de livros contendo erros conceituais e
representações negativas sobre determinados indivíduos e grupos.
Mas, na opinião de Garcia, seria necessário exigir uma maior revisão nessas obras:
"os livros didáticos precisariam abordar a participação do povo negro na construção
do país, na construção da riqueza nacional, na acumulação do capital
e também as suas batalhas, rebeliões, quilombos e suas lutas mais
contemporâneas".
Paula Cristina da Silva Barreto, professora da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, destaca que,
além dos livros didáticos, outro foco importante são as propostas
de mudança na formação dos professores. "Foi tímido o trabalho feito pelo
MEC nessa direção até o momento", critica a pesquisadora. Na avaliação dela,
sem professores bem preparados para abordar temas complexos,
como os abordados nos PCNs, "é muito difícil obter sucesso com a
alteração curricular e existe uma grande probabilidade de que as escolas
não coloquem em prática o que foi proposto". Os baixos salários pagos e
as condições de trabalho desanimadoras nas escolas são fatores também
destacados pelos pesquisadores como possíveis responsáveis pelo pequeno
envolvimento dos professores com propostas que visam abordar a diversidade
étnica e problematizar a questão do negro no Brasil no interior das escolas.
Puxada de rede - AMPLA - Associação dos Moradores de Plataforma
Experiências educativas alternativas
Existem diversos programas educativos espalhados pelo país que são propostos
e organizados por entidades ligadas aos movimentos negros brasileiros. Para Campos,
a diferença fundamental entre essas propostas e o ensino escolar "é o comprometimento
daqueles que montam os programas. Em geral são frutos de experiências de grupos
ligados aos problemas dos afro-descendentes; buscam, sobretudo, a eliminação da
desigualdade através de um instrumento poderoso: a consciência cada vez maior
da coletividade". Como exemplos, o pesquisador cita o Projeto da Mangueira,
voltado para os esportes, que já existe há muito tempo, além de experiências
que têm levado meninos e meninas às escolas de sambas-mirins no Rio de Janeiro.
Barreto, que tem acompanhado de perto alguns projetos na área de educação
implementados por organizações anti-racistas e/ou culturais de Salvador, destaca
como exemplos bem sucedidos a Escola Criativa do Olodum, o projeto de extensão pedagógica do Ilê Aiyê e o Ceafro. "Essas experiências têm sido importantes por fomentarem o debate e
gerarem demandas por mais qualidade do ensino público, por um currículo menos
eurocêntrico e mais multicultural e multirracial, por melhores livros didáticos e por
um ambiente racialmente mais democrático nas escolas", diz Barreto. O mais
interessante é que esses projetos se transformaram em referência para as
políticas adotadas por órgãos oficiais como o Ministério Educação (MEC) e
as Secretarias de Educação. Combinando educação formal e não-formal
esses projetos tratam, por exemplo, de conteúdos presentes no currículo
oficial em espaços como os barracões dos terreiros de candomblé ou as
quadras dos blocos afro; outros utilizam parte da produção cultural das
organizações - letras de música, mitos africanos etc. - no currículo das
escolas regulares. O ensino de História da África, na escola do Ilê Aiyê,
já acontece há vários anos.
Para Barreto "é de fundamental importância o fato de que as crianças e
jovens negros e mestiços são positivamente valorizados nesses projetos,
elas são consideradas como portadores de direitos, o que tem um efeito
direto sobre a auto-imagem e a construção da identidade pessoal e coletiva".
Atualmente, a socióloga trabalha com projetos educativos voltados para a
democratização do acesso e a permanência de estudantes negros e mestiços
no ensino superior e coordena o programa A cor da Bahia, que há dez anos
realiza pesquisas, publicações e atividades de formação na área de relações
raciais, cultura e identidade negra na Bahia. Desde 2002, o programa desenvolve
o projeto tutoria, que cria estratégias diversas para estimular, apoiar e promover
a formação de estudantes negros que ingressaram na Universidade Federal da Bahia.
Com o apoio do programa Políticas da cor fornecem bolsas de ajuda de custo aos
alunos e orientação acadêmica, visando o ingresso destes no mercado de trabalho
e em cursos de pós-graduação em condições mais competitivas. Na opinião de Barreto,
ainda há muito para ser feito com no sentido de assegurar uma maior
democratização - em termos raciais e econômicos - do sistema de ensino
superior público.
"É preciso entender que a desigualdade no Brasil tem cor, nome e história.
Esse não é um problema dos negros no Brasil, mas sim um problema do Brasil,
que é de negros, brancos e outros mais", avalia Gomes.
Tabela 1 - População ocupada, segundo ramo
de atividade, por cor (em %)
Brasil - 2001
Ramos de Atividade | Branca | Preta | Parda |
Agrícola | 16,1 | 17,5 | 27,5 |
Indústria de transformação | 14,1 | 11,2 | 10,1 |
Indústria da construção | 5,3 | 10,0 | 7,7 |
Outras atividades industriais | 1,0 | 1,3 | 1,3 |
Comércio de mercadorias | 15,6 | 11,4 | 12,7 |
Prestação de serviços | 18,9 | 27,2 | 20,9 |
Serviços auxiliares da atividade econômica | 5,6 | 3,2 | 2,7 |
Transporte e comunicação | 4,4 | 4,0 | 3,9 |
Social | 11,5 | 8,4 | 7,7 |
Administração pública | 5,2 | 4,4 | 4,3 |
Outras atividades, mal definidas ou não declaradas | 2,3 | 1,3 | 1,1 |
Total | 100,0 | 100,0 | 100,0 |
Fonte: IBGE. PNAD 2001
Tabela 2 - Taxas de desemprego total, por sexo e cor
Regiões metropolitanas do Brasil - 2002
Regiões Metropolitanas | Negros | Não-Negros | ||||
Total | Mulheres | Homens | Total | Mulheres | Homens | |
Belo Horizonte | 19,9 | 22,4 | 17,9 | 16,1 | 19,9 | 12,8 |
Distrito Federal | 23,0 | 25,2 | 21,0 | 17,2 | 21,2 | 13,3 |
Porto Alegre | 22,7 | 24,7 | 20,8 | 14,9 | 17,9 | 12,5 |
Recife | 22,4 | 25,8 | 19,8 | 19,1 | 23,3 | 15,3 |
Salvador | 29,0 | 32,0 | 26,2 | 19,9 | 21,9 | 17,9 |
São Paulo | 23,9 | 27,4 | 21,0 | 16,7 | 20,1 | 14,0 |
Fonte: Convênio DIEESE/SEADE, MTE/FAT e convênios regionais.
PED - Pesquisa de Emprego e Desemprego Elaboração: DIEESE
Obs.: (a) Dados com base na média do período de janeiro a junho de 2002
(b) Negros inclui pretos e pardos. Não-negros inclui brancos e amarelos
Tabela 3 - Distribuição das famílias por classe
de rendimento médio mensal familiar per capita,
segundo a cor do chefe (em %)
Brasil - 1999
Classes de Rendimento | Famílias segundo a cor do chefe | ||
Branca | Preta | Parda | |
Até 1/2 salário mínimo | 12,7 | 26,2 | 30,4 |
Mais de 1/2 salário mínimo | 20,0 | 28,6 | 27,7 |
Mais de 1 a 3 salários mínimos | 37,3 | 31,1 | 27,7 |
Mais 3 a 5 salários mínimos | 11,1 | 4,3 | 4,4 |
Mais de 5 salários mínimos | 14,1 | 3,4 | 3,2 |
Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2000
Elaboração: DIEESE
Tabela 4 - Taxas de desemprego total, por cor
e escolaridade (em %)
Regiões metropolitanas do Brasil - 2001
Regiões Metropolitanas | Cor | Analfabeto | Fundamental Incompleto | Fundamental Completo | Médio Incompleto | Médio Completo | Superior |
Belo Horizonte | Negra | (1) | 24,2 | 23,2 | 33,8 | 19,2 | (1) |
Não-Negra | 17,9 | 15,6 | 16,3 | 22,3 | 12,6 | 4,8 | |
Distrito Federal | Negra | 23,1 | 27,2 | 25,5 | 33,8 | 19,7 | 7,3 |
Não-Negra | 15,9 | 22,0 | 23,0 | 30,3 | 18,3 | 7,3 | |
Recife | Negra | 17,0 | 22,0 | 23,3 | 30,9 | 22,4 | (1) |
Não-Negra | (1) | 20,5 | 21,9 | 29,7 | 22,5 | (1) | |
Porto Alegre | Negra | (1) | 24,2 | 23,2 | 33,8 | 19,2 | (1) |
Não-Negra | 17,9 | 15,6 | 16,3 | 22,3 | 12,6 | 4,8 | |
Salvador | Negra | (1) | 31,5 | 29,3 | 42,1 | 25,3 | (1) |
Não-Negra | (1) | 26,5 | 27,3 | (1) | 19,7 | (1) | |
São Paulo | Negra | 16,4 | 21,4 | 25,9 | 32,7 | 18,1 | 6,9 |
Não-Negra | 16,2 | 16,7 | 17,8 | 26,4 | 14,3 | 6 |
Nota (1) A amostra não comporta desagregação para esta categoria
Obs.: (a) Dados com base na média do período de janeiro a junho de 2001;
(b) Negros inclui pretos e pardos. Não-Negros inclui brancos e amarelos